A bruxa
- Beto Scandiuzzi
- 26 de nov. de 2021
- 3 min de leitura
“imagina só, já era velha quando eu era menino de calça curta”, assim me contava meu pai na sua voz pausada, agachado em frente da nossa casa, chapéu de feltro marrom, camisa xadrez de chitão de manga comprida e abotoada nos punhos e riscando o chão de terra com um graveto qualquer. Ela, a quem meu pai se referia, era d. Bertolda Joaquina, que ninguém sabia a idade, que parecia viver ali desde sempre e era conhecida na redondeza pelos seus poderes milagrosos de cura.
Tosse comprida, vento virado, espinhela caída, mal de Simioto, cobreiro, barriga d’água, olho gordo, não havia doença que ela não curava. Havia uma, ela dizia, com gente mordida de cachorro louco eu não posso, não tem cura. Mas acalmava-os quando a loucura infernizava a alma dos pobres coitados, como acalmava um negro forte como um touro acorrentado num poste e que vivia num povoado vizinho ao nosso. Ele era violento, gritava dia e noite agitando as correntes. Mas ficava manso como um cordeiro quando ela chegava e acariciava sua cabeça.
Dizia a lenda que Carlos Gomes só morreu porque ela, chamada às pressas, não chegou a tempo, as distâncias eram outras naqueles tempos, e ela nem sabia bem para que lado ficava Belém onde o músico estava doente. Mas contava do enterro com tantos detalhes que todos acreditavam sem rodeios. Morava sozinha numa casa de meia água de pau-a-pique num terreno comprido dobrando à direita no fim da rua da nossa casa.
Tinha uma pele acobreada, sem brilho, toda arrugada, uma boca murcha, sem dentes, olhos profundos e melancólicos. Usava sempre o mesmo vestido preto de mangas compridas, fechado até o pescoço e que ia até os pés, uns pés sempre descalços, rachados e uns dedos torcidos, escuros. Na cabeça um lenço preto escondia os cabelos que a lenda dizia nunca terem sido lavados ou cortados e que soltos poderiam medir mais de vinte metros.
Dizia que tinha sido casada, um dia com José de Alencar, outro dia com Machado de Assis, mas ninguém nunca viu homem na sua casa e uma outra lenda dizia que ela tinha tido dezenas de filhos que iam desaparecendo à medida que um outro chegava ao mundo. Ninguém sabia do que vivia, gostava de comer os miúdos do porco que ela mesma sangrava e que os vizinhos diziam escutar gritar em noites sem lua e sem que qualquer pessoa tenha visto alguma vez um chiqueiro no quintal da casa.
Para a molecada era a bruxa da rua de baixo, tínhamos um medo danado dela e nenhum de nós se atrevia a fazer bagunça em frente à sua casa, jogar bola, nem bete ou brincar de pique, e até os mascates que vinham de longe vender suas tralhas e bugigangas calavam suas matracas quando andavam pela redondeza.
Só entrei uma vez na sua casa e nada ficou registrado na minha memória, eu havia tido um desmaio, fiquei um morto-vivo uns pares de horas, ela colocou a mão na minha cabeça e disse para minha mãe, fique tranquila, o menino vai ficar bom.
Eu fui para longe, ela ficou por lá curando o povo com água benta e reza. Depois de muitos anos voltei e passei em frente à sua casa, tudo parecia igual, ela estava sentada num saco velho e fumava um cachimbo feito de sabugo de milho. Passei, fazendo de conta que não a havia visto, mas não pude deixar de escutar sua voz fina, quase um suspiro:
– Oi Tonho, ocê não conhece mais a gente?
Eu arregalei os olhos e parei. Antônio era o nome do meu bisavô, morto há muitos anos.
Julho, 2014
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