Era uma vez em Key West
- Beto Scandiuzzi
- 27 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Uma das muitas atrações de Key West – Flórida, Estados Unidos, é visitar a casa onde viveu o escritor Ernest Hemingway nos anos 1930 com sua segunda mulher, Pauline. Passei por ela logo no primeiro dia quando cheguei à cidade, mas não entrei pela enorme quantidade de turistas que havia na porta. Apenas fiquei admirando a casa, imponente, em dois andares, construída em estilo colonial, toda avarandada, janelas e portas afrancesadas no meio de um imenso jardim com palmeiras tropicais.
Já era noitezinha com ameaça de chuva quando voltei à casa de Hemingway depois de tomar uns quantos mojitos, aperitivo favorito do escritor no seu bar de costume, o Sloppy Joe’s. Diferentemente de quando havia passado de manhã, a rua estava vazia, silenciosa e parei bem em frente à casa totalmente às escuras. Acendi um charuto cubano, primeiro depois de tantos anos sem fumar, soltei uma longa tragada e foi quando escutei:
- Boa noite – num espanhol duro que parecia vir do além.
Me recupero da surpresa e vejo no jardim um vulto deitado numa espreguiçadeira. Respondo boa noite, em espanhol, e então ele pesadamente se levanta, apruma o corpo e devagarzinho se aproxima do portão onde eu estava. E não pude conter a emoção ao reconhecer o próprio Hemingway, em bermudas curtas e um jaleco de safári, com seu rosto bronzeado, fartos cabelos e barba acinzentada bem aparada, queixo quadrado, viril naquele corpanzil de jogador de rúgbi. Na mão um cachimbo que parecia apagado. E saindo do meu estupor pergunto:
- Hemingway? Mas você não está morto?
Ele larga uma sonora gargalhada e responde:
- Não, estou bem vivo, aqui se pode viver eternamente. Lendo a Bíblia e os clássicos russos, comendo peixe, tomando os meus mojitos, briga de galo, lutas de boxe, pesca de marlim-azul e cuidando dos meus gatos. É o melhor lugar que conheci, tem flores, palmeiras, goiabas e cocos.
- Não parece, mas você já deve ter mais de cem anos, certo? – pergunto.
- Errado - ele me responde pensativo. O tempo é relativo, depende de como se mede, eu já não tenho idade, a morte não existe.
- E não anda escrevendo? – quis saber. Não conheço nenhum livro publicado desde a sua suposta morte.
- Não, já não tenho mais vontade de escrever. Vivo dos dólares que vocês, turistas, deixam aqui cada dia. E me bastam.
- Verdade que você tem muitos gatos? – continuo o interrogando.
- Sim, cinquenta e quatro, de uma raça especial, de seis dedos, todos descendentes da primeira, a gata Snowball. Sabia que trazem muita sorte?
- Não, não sabia. Escuta, é verdade que teve um romance com Sarita Montiel? – sigo com as perguntas numa voz calma para não o ofender.
- Sim, muito breve, me responde. Nos tempos de Cuba, foi a mulher mais linda que conheci. Lhe ensinei a fumar charutos – conclui com uma leve risadinha e o olhar perdido no nada.
Dito isso, ficou em silêncio, colocou na cabeça um boné branco, fez um sinal de adeus com a mão, e caminhou lentamente em direção à casa. Na escuridão ouvi claramente o ruído da porta se fechando. Eu fiquei ainda ali, estático, incrédulo, pensando se aquele Hemingway era de verdade ou alguma pegadinha de americano, algum perdido do concurso de dublê do escritor que se realiza anualmente na ilha ou o efeito dos muitos mojitos que havia tomado no Sloppy Joe’s. Acho que nunca vou saber.
N.A – Ernest Hemingway, imprescindível. Em 2024, comemoramos 125 anos do seu nascimento.
José Humberto Scandiuzzi
É engenheiro e autor de três livros de crônicas. Escreve no blog www.blogdobeto.com.br

Oi Betão maravilha de crônica e nos fez relembrar aquela viagem especial Realmente os mojitos aguçam a percepção e a criatividade e ainda eu e o Mano pudemos presenciar graças também aos mojitos a sua conversa com o Hemingway Fantástico Grande Abraço