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O amigo argentino

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 17 de set. de 2021
  • 3 min de leitura

Chegou a Frankfurt em pleno verão europeu para visitar uma daquelas feiras com gente do mundo todo, com duas malas e sem hotel, que nesta época deve ser reservado com meses de antecedência. Mas o que poderia ser um inferno para muitos não era para Pepe, uma pessoa que parecia ter o anjo da guarda sempre de plantão. Enquanto caminha de um lado para outro em busca de um quarto em frente à estação de trem, topa com uma senhorita, que do nada lhe oferece hospedagem. Ela era zeladora de um edifício e vivia num apartamento no último andar. Como foi o trato ele não me explicou, já que não falava uma palavra de alemão nem ela de espanhol. Durante o dia ele ficava na feira e, quando voltava à noite, ela cozinhava salsicha branca, chucrute, bebiam cerveja e faziam amor. Num canto da cozinha, com vista para o rio Main e a catedral de São Bartolomeu ao fundo, um papagaio não cansava de repetir:

— Guten morgen Pepe, guten morgen Pepe, sem que ele entendesse se era uma ofensa ou elogio.

Quando a feira terminou, ele continuou por lá aproveitando a hospedagem barata e passeando pela cidade numa bicicleta que ela pedalava com ele, de saco e corbata, sentado no cano. Ele fumava enquanto ela recitava, de memória, versos de Schiller entremeados com Goethe.

Ouvi essa e muitas outras histórias do Pepe, que era argentino, magro, olhos miúdos e melancólicos. Tinha o bigode ralo e os cabelos pretos sempre despenteados que de vez em quando ele jogava para trás com a mão, e que lhe davam um ar de eterno boêmio. Sua conversa era pausada, serena, encantadora. Gostava de beber e seus dedos amarelados de nicotina denunciavam o vício do cigarro, sem filtro, que ele fumava um depois do outro.

Conheci-o na Alemanha, numa destas reuniões anuais, convidados pela empresa em que trabalhávamos, com representantes de vários outros países. O fato de sermos sul-americanos nos aproximou, mas desde o início estabelecemos uma relação de amizade que durou vários anos. Lembro-me bem da primeira noite no hotel, quando nos conhecemos. Depois de tomar uma boa cerveja, o cansaço me fez ir para cama mais cedo. Ele me disse que estava sem sono e que ficaria um pouco mais no bar.

No outro dia encontro-o no café da manhã com uma cara amarrotada de quem havia dormido pouco. Curioso, pergunto o que havia passado e ele me confirma que, sim, havia ido dormir de madrugada. Ante a minha cara de espanto, diz que ficara no bar com um colega da China. “Da China? E ele fala espanhol?”, emendo, já sabendo das limitações linguísticas do Pepe. Ele me crava aquela olhada de ressaca, acende um cigarro e me diz tranquilamente:

— Não, ele não fala espanhol.

— E o que vocês ficaram fazendo até de madrugada?

— Fumando e bebendo, eu lhe oferecia um Marlboro argentino, depois ele me oferecia um Camel chinês. Quando terminava a cerveja a gente levantava a mão e o garçom enchia os copos, e de vez em quando tomávamos um café, assim, simples…

Olhei-o com um sorriso de admiração já imaginando a cena dos dois, calados, sentados no bar em penumbra, com a fumaça dos cigarros subindo em caracóis para o alto e que nem sequer Fellini, nos seus melhores momentos, poderia haver pensado.

Agosto, 2021

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