Um beijo da Marilyn
- Beto Scandiuzzi
- 26 de ago. de 2022
- 3 min de leitura
Descobri-o por acaso logo no início da pandemia quando para fugir da rotina caseira intensifiquei minhas caminhadas diárias aqui pelo Proença, mais longas, mais solitárias, mais contemplativas. E foi numa dessas caminhadas que, ao invés de virar à esquerda em uma rua, virei à direita. E lá estava ele, sentado num tamborete de madeira em frente ao seu armazém. Digo armazém porque, mesmo depois de tanto tempo visitando-o, não sei como qualificá-lo. Tem uma porta larga, dessas que se fecham com uma lâmina de zinco ondulado, uma cobertura frontal de Eternit, uma pequena mesa de chapa com quatro cadeiras à frente, duas tabuletas com as promoções do dia e nenhuma identificação. Quando se entra é um espaço de dois por três metros, um pequeno balcão à direita e uma prateleira que chega até o teto à esquerda.
Aproveitei o desvio e entrei no armazém movido por essa onda de solidariedade com ênfase em prestigiar os pequenos negócios, a fim de mantê-los ativos e resistentes à pandemia. Pensei comigo: Vou comprar coisas empacotadas, que não se vencem e de uso diário. Foi o que fiz: papel higiênico, arroz, macarrão, alguns enlatados, pasta de dente. Não olhei os preços. Ele somou tudo à mão num papelzinho de pão e eu paguei à vista. Ele agradeceu, eu disse até logo. Foi nosso primeiro encontro.
Nas caminhadas seguintes, muitas vezes, eu passei e o local estava fechado, mesmo em horário comercial. Em outras, uns senhores veteranos tomavam cerveja sentados à mesa. Mas, numa ocasião, um senhor de cabelos grisalhos, pançudo, camisa da Ponte e que estava parado em frente ao armazém, me acompanhou na caminhada. E logo me perguntou se eu conhecia o dono do armazém. Eu disse que o conhecia dali, de comprar algumas coisinhas de vez em quando. Então ele para e me diz:
– Ninguém pode imaginar que detrás daquele baixinho do Ananias tem tanta história. Sabia que ele foi barman do Hotel Copacabana Palace do Rio? E transou com a Marilyn Monroe numa das suas visitas ao Brasil? E que foi marinheiro da marinha mercante, mercenário em guerras africanas?
Ante meu assombro, larga um sorrisinho e completa:
– Qualquer hora te conto mais. E se mandou em direção ao centro da cidade.
Eu fiquei parado pensando se o tipo estava com gozação ou se era verdade o que me havia contado. Realmente não dava muito para o dono do armazém, já entrado nos anos, baixinho, magro, pele encardida, ressecada, sempre com aparência cansada, de bermudas e havaianas.
O assunto não saiu da minha cabeça e na manhã seguinte eu logo voltei ao armazém. Ele estava sozinho, fiz as compras de sempre, paguei e quando ia saindo lhe perguntei:
– Ananias, me contaram várias coisas de você, que já viajou o mundo como marinheiro, mercenário em guerras na África, mas me responda só essa: você realmente transou com a Marilyn?
Ele deu uma sonora risada, me agarrou pelo braço e me fez sentar na mesinha de fora. E foi logo dizendo:
– Olha, você sabe, o pessoal exagera um pouco. Quanto à Marilyn, te explico. Primeiro, eu era bem jovem, ela também, uns vinte e poucos anos nessa época e ainda não era a deusa que viria a ser anos depois. Segundo, eu não transei, mas estive com ela a noite toda no bar conversando e servindo-lhe drinques, ela triste, amuada, depois de uma pequena discussão com o Jorginho. De manhã, ao despedir-se, nos beijamos e ela me deu um retratinho dela autografado.
Nisso, tira a carteira do bolso e de dentro sai uma foto bem surrada e com dobras nos cantos. Me mostra. Era Marylin e em baixo se podia ler em inglês: ao Ananias, com carinho, Norma, que era o nome dela de batismo.
Eu arregalei os olhos, surpreso, sem poder reagir a tamanha revelação. Sorte que apareceu um cliente, ele se foi e eu também. Depois disso, sempre que passo por ali, entro e batemos um papo. Eu fico olhando-o num misto de inveja e admiração, me lembrando da Marilyn e pensando: como um baixinho e feio como esse ganhou um beijo dela?
Agosto, 2022 – 60 anos da morte de Marylin!
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