As carinetas

Eu abri a porta da sacada do apartamento, como cada manhã, e dei de cara com a sibipiruna, que parecia estar aí desde sempre, e que em outros tempos, ainda moça, em dias de primavera, debruçava seus galhos compridos e tortos pintados de verde e amarelo dentro da nossa sacada, se misturando aos hibiscos, primaveras e flores-de-maio. Hoje, já crescida e vaidosa, com seus galhos entufados de flores, já não me dá bola, e faz a alegria dos que vivem nos andares mais altos. E tenho que me contentar com as sibipirunas vizinhas.

Mas é lá no alto das copas das sibipirunas que estão as carinetas, da família das cicadoidea, mais conhecidas como cigarras. É que nesses tempos mornos de inicio de primavera elas aparecem e fazem o maior carnaval cantando tão alto, tão intenso, tão estridente, que chega a doer os ouvidos de qualquer cristão, sem se importarem se é uma bela tarde ensolarada ou já noite alta de dormir. Eu digo ela, mas estou errado, depois de investigar a gente fica sabendo que quem faz essa cantoria e agitação toda é o macho tentando conquistar alguma fêmea que depois de pôr os seus ovos morrem. Triste destino.

E eu fico aqui pensando se aqueles jurados de programas de calouros da TV de antigamente seriam capazes de avaliar bem o canto das cigarras. Se lembram do maestro Zé Fernandes, do programa do Flavio Cavalcanti? Ele era duro com os calouros, quase sempre com avaliações ruins, queria vê-lo dizer para a cigarra, naquela sua voz de barítono: “- A senhora semitonou, está desclassificada!” É, eu fiquei anos sem saber o que era semitonar e é provável que a cigarra também não entenda nada disso, ela que só sabe cantar.

Outro dia topei com uma cigarra, foi só abrir a porta da sacada e ela, ou ele, veio num voo rasante, incerto, bateu no vidro lateral da porta e aturdido caiu atrás do vaso grande de samambaia. Eu o encontrei, que de tão assustado perdeu a voz, e com todo cuidado soltei-o pela janela, esperando que ele tenha morte mais honrada, quem sabe estourando o peito de tanto cantar por alguma fêmea enamorada.

E falando em cigarras me lembro de outro inseto dos meus tempos de criança, alguns o chamavam de siriri, outros de bicho-da-luz, mas lá onde eu morava, e acho que só lá, seu nome era aleluia. Se dizia que depois de perder as asas viravam cupins, temidos por minha mãe que imaginava-os perfurando o seu lindo tajer preto de madeira de lei onde ela guardava de tudo e que ficava na cozinha.

Em geral vinham acompanhados pelos besouros, pretos, cascudos, cheios de pernas finas, tortas, que, pesadões, voavam meio descontrolados e quando aterrissavam faziam um barulhão e me deixavam amedrontado. Também em noites de calor intenso, como que a anunciar as chuvas de verão, as aleluias invadiam a sala e ficavam revoando em círculos em volta da luz amarelada no teto. Elas eram inofensivas como as cigarras, não cantavam e, no máximo, podiam cair no seu prato de comida.

Uma das fórmulas para liquidá-las era colocar uma bacia com água bem debaixo da lâmpada. Minha mãe dizia que elas se viam refletidas na água, se atiravam e morriam afogadas. Eu não sabia se era verdade, mas funcionava e confesso que, sem muito o que fazer, matar aleluias era um bom passatempo para o menino desocupado que eu era. Ainda bem longe de se preocupar com a vida.

 

Outubro, 2015

3 comentários sobre “As carinetas”

  1. Ver Thomas , Maria e Felipe brincando c as aleluias é lindo! Eles querem espanta- lãs e não mata- lãs… lindo essa atitude !!!
    Adoro quando tem cigarras aqui nas plantas… doces lembranças da minha infância!
    Linda crônica, só boas lembranças!

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