A moça na arquibancada do Moisés Lucarelli

Houve um tempo em que o futebol não estava nas mãos da TV e do merchandising. Os jogos eram às quartas-feiras à noite e, aos domingos à tarde, horário inamovível: 16 horas. Hoje se podem ver jogos durante toda a semana, em qualquer horário e até mesmo o campeonato chinês de madrugada.

Mesmo assim, meio alheio às notícias locais, achei estranho quando numa destas manhãs um amigo me telefonou: – Vai hoje à noite ver a Ponte?

– Não – respondi. – Hoje é segunda-feira.

– E daí – responde ele. – Jogo importante contra o rebaixamento. Não vou porque estou de plantão.

O amigo é médico e o jogo me ficou na cabeça. Não por um interesse específico, nem sou pontepretano, mas talvez para fazer algo diferente da rotina diária. Abri o celular e anotei o horário do jogo, que me pareceu adequado: 20 horas. O dia passou, nada de importante aconteceu e então decido ir ao campo. Às 19h30 saio de casa e, para surpresa, chove. Não muito forte. Vou caminhando pelas poucas quadras até o estádio. Em poças de água formadas nas calçadas esburacadas caem gotas em forma de globos, parecem soldadinhos a caminho da guerra. Não sei por que sempre volto à minha infância quando vejo essa cena.

E vou passando por essas ruas com pouca luz e que conheço de memória, com casas antigas, baixas, de desenhos simples, retilíneos, telhados cruzados em forma de V, algumas somente caiadas, alpendre num canto, muros baixos e jardins perfumados com hortênsias, roseiras e primaveras e que o progresso vai demolindo dia a dia.

Quando chego frente ao estádio já não chove. A torcida é pouca. Compro o ingresso facilmente: R$10,00, preço para idoso. Nem pediu identidade. Entro no estádio e me acomodo numa arquibancada lateral longe das organizadas. Uma bandinha mequetrefe tenta animar torcedores desanimados. Me divirto com uns quero-queros que brincam no gramado. E com um garoto, estimo, vestido de macaca e que faz malabarismos arrancando aplausos da plateia.

O jogo começa, bola para um lado, para outro, para o alto, emoções poucas, gol nenhum. Os torcedores mais fanáticos se enervam. Me aborreço, tomo água, chupo um picolé aguado, como um pacote de amendoim. O jogo segue igual, ruim. Penso em ir embora quando olho para a direita e a vejo. Sentada a uns cinco metros de mim, destoando completamente do ambiente. É morena, cabelos pretos presos na nuca e veste uma camiseta escura e um short jeans. Tem um rosto alegre, uma beleza juvenil que me impressiona. Está ao lado de um rapaz, mas diferentemente dele que sofre com o time, ela parece não se importar com o jogo. Olha o celular, finge que faz uma selfie, ajeita o cabelo, retoca a maquiagem. No intervalo desce a arquibancada e desfila sob olhares gulosos dos torcedores vizinhos, do meu também. Quando volta, traz um pacote de pipoca que come distraída.

O segundo tempo repete o primeiro. Vou alternando com um olho no jogo e outro nela que segue entretida no celular. Ao final, empate 0X0, se levanta, agarra o braço do rapaz que está ao seu lado, lhe dá beijinho no rosto e saem caminhando em direção à saída alheios aos protestos da torcida contra o presidente. O rapaz, apesar da tristeza pelo time, estava consolado e tinha tudo para seguir feliz em casa. Azar no jogo, sorte no amor!

 

Novembro, 2023

 

N.A. – duas semanas depois, no dia 25/11 a Ponte derrotou o CRB e se garantiu na Série B.

15 comentários sobre “A moça na arquibancada do Moisés Lucarelli”

  1. Gostei dos olhares gulosos. rsrsrsrsrsrs
    Excelente observação. Você está escrevendo cada vez melhor. Toda minha admiração. Abraço !

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